O que é Vedānta? (e por que o estudo de Vedānta não é teórico)
Por Henrique Castro
O significado da palavra Vedānta

Quando começamos o estudo de Vedānta, é comum não sabermos bem o que responder diante de familiares e amigos quando nos perguntam o que é, afinal, aquilo que estamos estudando.
No entanto, a resposta correta e precisa (que dificilmente será encontrada na internet) é bem simples.
Vedānta é um pramāṇa, um meio de conhecimento. Mais especificamente, um śabda-pramāṇa, um meio de conhecimento na forma de palavras, frases.
É claro que essa resposta não causa grande entusiasmo nem esclarece muita coisa para o ouvinte que pergunta apenas por curiosidade ou educação. Nesse caso talvez não importe muito a resposta que o estudante dará. Pode-se dar uma resposta provisória.
Mas o estudante precisa saber dar para si mesmo a resposta correta e entender suas implicações. Pois, na ausência dessa clareza, o estudo de Vedānta, como veremos, perde sua eficácia e jamais dará seu fruto.
Essa resposta precisa é dada na obra Vedāntasāraḥ, escrita por Śrī Sadānanda Yogīndra no século XV, que apresenta logo em seu início a seguinte definição:
वेदान्तो नामोपनिषत्प्रमाणं तदुपकारीणि शारीरकसूत्रादीनि च॥
“Vedānta é um pramāṇa – na forma das Upaniṣads – e Brahma-sūtram etc. que lhe são auxiliares”.[1]
Nesse "etc." incluímos a Bhagavadgītā e inúmeros textos auxiliares chamados Prakaraṇagranthāh.
Então Vedānta é o nome dado a um conjunto de textos, conhecidos como Upaniṣads, que fazem parte das escrituras sagradas da Índia antiga, os Vedas. Tais textos são considerados pramāṇa, um meio de conhecimento primário, como nossos sentidos, pois são capazes de gerar em nós um conhecimento direto e conclusivo sobre aquilo que somos verdadeiramente.
Por que esses textos recebem esse nome? Por estarem localizados na parte final dos Vedas, são chamados Vedāntaḥ (veda + anta) no singular, o final dos Vedas. A palavra anta significa fim, a parte final. Como são muitas Upaniṣads, às vezes o termo pode ser usado no plural: Vedāntāḥ, os finais dos Vedas.[2] Assim, Vedānta é sinônimo de Upaniṣad e é um termo que se refere meramente à sua posição em relação aos Vedas. Nele incluímos o Brahmasūtram (chamado também Śārīrakasūtram), a Bhagavadgītā, e outros textos auxiliares, pois são textos que analisam, resumem ou explicam a mensagem das Upaniṣads.
Quando usamos a expressão “estudo de Vedānta”, “conhecimento de Vedānta” ou “professor de Vedānta”, é a isso que a palavra Vedānta se refere verdadeiramente. Além de Upaniṣad, Brahmasūtram, Bhagavadgītā e textos auxiliares, estudamos também seus comentários, especialmente os escritos por Śrī Śaṅkara no século VIII da era comum. A língua usada em todos esses textos mencionados e seus comentários é uma única, o sânscrito.
Etimologias alternativas para o termo Vedānta podem ser encontradas em alguns livros hoje em dia, mas elas não constituem o significado principal da palavra. Não correspondem ao entendimento geral dos professores tradicionais. Isso fica claro na Muṇḍaka Upaniṣad, mantra 3.2.6, em que Śrī Śaṅkara explica a palavra vedānta-vijñāna como “o conhecimento que nasce de Vedānta”[3]. Fica evidente aqui que a palavra Vedānta não se refere ao conhecimento em si, mas àquilo que o produz.
Um sentido secundário da palavra Vedānta pode ser encontrado em um verso no capítulo 15 da Bhagavadgītā [4]. Em seu comentário, Śrī Śaṅkara a explica como vedānta-artha-sampradāya, “a tradição de ensino da mensagem de Vedānta”. Portanto, a tradição de ensino desses textos, constituída por uma sequência milenar e ininterrupta de professores, também pode ser o significado da palavra Vedānta em alguns casos. Mas, ainda assim é um significado secundário, derivado do principal, não o principal.
Portanto, podemos afirmar com segurança que Vedānta não é uma religião, filosofia, psicologia, doutrina, ciência ou teoria. O termo também não se refere primariamente a um conhecimento (pramā), estudo, escola filosófica, darśanam ou mesmo a uma tradição. Se refere a um meio de conhecimento (pramāṇa), e com isso queremos dizer: um instrumento gerador de conhecimento, tal qual nossos cinco sentidos. Por que entender isso é tão importante? É o que veremos a seguir.
As implicações do fato de Vedānta ser um pramāṇa
Nossos cinco órgãos dos sentidos são instrumentos geradores do conhecimento perceptivo. Assim como a visão é um pramāṇa para o conhecimento visual (formas e cores) e os ouvidos são pramāṇa para o conhecimento auditivo (sons), Vedānta – isto é, o conjunto de textos que constitui a parte final dos Vedas – é um pramāṇa para o conhecimento daquilo que realmente somos, consciência ilimitada, Ātmā. Tal conhecimento de nós mesmos é o que faz a diferença na vida, é o que liberta uma pessoa do sofrimento. Por isso, pramāṇa-vicāra, o questionamento acerca dos possíveis meios geradores de tal conhecimento, se torna igualmente importante.
A resposta para a pergunta enunciada no título deste artigo, como vimos, é simples e se resume em uma única palavra: pramāṇa. Se quiser ser mais específico, duas: śabda-pramāṇa, um meio de conhecimento na forma de palavras. Porém, para entender melhor o que isso significa, precisamos dedicar algum tempo à reflexão (e para assimilar completamente seu sentido precisamos de ainda mais tempo). É uma reflexão que vale a pena, e o objetivo deste artigo é dar apenas um início e direção a essa longa jornada reflexiva que cada um precisa fazer.
Nossa tradição de ensino considera que, para adquirirmos qualquer conhecimento válido neste mundo, é preciso um pramāṇa. Seis pramāṇas, seis meios de conhecimento, são aceitos e analisados. Percepção, inferência, símile, pressuposição, não cognição, e palavras.[5]
Vedānta é um pramāṇa do último tipo: śabda-pramāṇa. Se analisarmos, veremos que nenhum dos outros pramāṇas funciona para conhecermos Ātmā, pois ele não pode ser percebido pelos sentidos. O Ātmā não tem forma, cor, som, cheiro, gosto ou toque – e assim seu conhecimento fica inacessível por qualquer meio que se baseie em dados perceptivos. Nos sobra o último: as palavras. Nós conhecemos bem śabda-pramāṇa, pois lidamos diariamente com ele, quando lemos uma notícia no jornal, a lista de ingredientes em um produto alimentício, a bula de um remédio etc. ou quando, em uma conversa, ficamos sabendo de algo por meio das palavras de nosso interlocutor.
Mas esse śabda-pramāṇa, por sua vez, é subdividido em dois tipos. O primeiro é laukika-śabda, frases ditas por um ser humano, que se tornam válidas como pramāṇa somente se o emissor de tais frases for uma pessoa confiável, verdadeira. Caso contrário, as palavras perdem o status de pramāṇa. O segundo tipo é vaidika-śabda, frases vindas dos Vedas, que, por serem uma manifestação de Īśvara, são sempre válidas. São frases que não foram escritas por ninguém, nem mesmo pelos Ṛṣis. Não têm um início. Elas vêm junto com a própria manifestação do cosmos. Os Ṛṣis apenas “veem” as frases dos Vedas e Vedānta, não são seus autores.[6] Assim, as Upaniṣads não são o registro das experiências espirituais dos sábios da Índia, como se costuma ouvir. São vaidika-śabda-pramāṇa.
De quê serve um estudo teórico?
Aqui temos um aparente problema. Vemos no nosso dia a dia que as palavras de fato podem ser um meio de conhecimento, mas sempre meramente de um conhecimento indireto, ou seja, sujeito a posterior verificação pelos sentidos. Como, por exemplo, o conhecimento de um local distante descrito pelas palavras – faladas ou escritas – de um amigo. Imagine que ele descreva por carta os detalhes de um local pouco conhecido em Rishikesh, aos pés dos Himalaias, na beira de Gaṅgā, o rio Ganges. Por melhor que seja a descrição, adquiro um conhecimento indireto, provisório e, portanto, inferior ao conhecimento direto nascido da experiência original de visitar tal local e percebê-lo diretamente com meus sentidos. Dessa forma, as palavras estão frequentemente associadas ao conhecimento indireto e provisório, enquanto os órgãos dos sentidos estão associados ao conhecimento direto e final.
Por isso muitas pessoas, inclusive alguns Swamis e professores modernos, acreditam que as palavras de Vedānta estão no âmbito do conhecimento indireto, no âmbito da teoria. Acreditam que após o estudo dos textos, que seria meramente teórico, precisaríamos de uma prática para adquirir o conhecimento de nós mesmos de forma direta, isto é, o conhecimento na forma de uma experiência direta que comprove o eu ilimitado descrito provisoriamente por palavras.
Depois de ter estudado Vedānta da forma tradicional, fica muito claro para qualquer um que essa crença é equivocada. Vedānta não é teoria. Também não é prática. É um meio de conhecimento na forma de palavras que, sim, tem a capacidade de gerar o conhecimento direto. O mero estudo de Vedānta sob orientação de um professor qualificado é mukhya-sādhana, o sādhana principal, chamado śravaṇam, e é suficiente para gerar o conhecimento direto do eu ilimitado em um buscador que tenha a mente preparada. Não é preciso nenhuma prática ou sādhana posterior.
Admitimos, porém, que esse equívoco é justificado, pois de fato quase sempre as palavras são limitadas a transmitir somente um conhecimento indireto, teórico. E concordamos que um conhecimento indireto não é suficiente para eliminar o sofrimento e o sentimento de limitação.
No entanto, anote isto: em algumas circunstâncias especiais, as palavras são capazes de produzir conhecimento direto. Como? Quais são essas circunstâncias especiais? Para ilustrar esse ponto, conta-se uma bela história, a parábola do décimo homem (ou o décimo menino).[7]
A parábola do décimo menino
Certa vez, dez meninos fizeram uma viagem a pé na floresta em direção a uma cidade vizinha. No caminho, atravessaram um rio forte e profundo com o uso cordas, um por um. Ao final, cada um fez a contagem do grupo para se certificar de que todos haviam atravessado com sucesso e poderiam continuar a jornada. No entanto, ao fazer a contagem, todos esqueceram de contar a si mesmo. Contaram apenas nove. “Somos nove! O décimo deve ter morrido no rio!” Todos lamentavam com grande sofrimento. Alguns ainda buscavam no rio para ver se o encontravam, outros já haviam desistido da busca e consideravam certa sua morte. Então outro viajante que passava pela região, tendo escutado a lamentação do grupo e tendo compreendido a causa do seu sofrimento, por compaixão, disse ao grupo as seguintes palavras: “Não se preocupem, o décimo menino existe, está vivo!” Um deles se aproximou e perguntou esperançoso: “E onde está o décimo?” Todos agora já estavam mais calmos e disponíveis para ouvir. O viajante, tranquilo, respondeu com a frase: “Você é o décimo!”
A parábola é usada para ilustrar como o śabda-pramāṇa tem a capacidade de gerar um conhecimento direto nos casos em que o assunto revelado por ele é, em si mesmo, algo diretamente já experienciado, evidente, como por exemplo você mesmo. Essa é a primeira circunstância especial requerida. Além disso, é preciso que a linguagem em si indique claramente essa natureza direta. Essa segunda circunstância também é importante. Por isso, se por um lado a frase “o décimo existe” pode ser considerada geradora de um conhecimento indireto, por outro, a frase “você é o décimo” sem dúvida produz no ouvinte um conhecimento direto do décimo menino, que é ele mesmo – e seu sofrimento e busca pelo décimo terminam ali mesmo, imediatamente.
imagine que o décimo menino não confie no sábio viajante e assim considere que suas palavras não têm o status de pramāṇa. Imagine que ele tenha a seguinte dúvida: “Será que ele está falando a sério quando diz que eu sou o décimo?” Ou: “Eu não acho que possa ter cometido um erro na contagem. Portanto, não posso ser o décimo.” Ou ainda: “Estamos há tanto tempo buscando o décimo, não é possível que nossa busca se baseie em um erro tão simples.” Todos esses são obstáculos possíveis ao conhecimento direto nascido da frase do viajante.
Da mesma maneira, Vedānta revela, por meio de suas frases principais, mahāvākya, que você é Aquele, o ilimitado Ātmā, que você esteve sempre buscando. Vedānta não está a dizer que você vai se tornar Aquele. O verbo usado na frase está no presente do indicativo. “Você é Aquele.”[8] Tendo ouvido a frase, alguns obstáculos a esse conhecimento podem surgir e impedir que o indivíduo usufrua dele imediatamente. Mas, independentemente disso, o conhecimento gerado é direto desde o início, pois o assunto diz respeito a você mesmo, o sujeito, o ser consciente que é autoevidente, sempre já experienciado.
Por ser um pramāṇa capaz de transmitir um conhecimento direto, essas frases de Vedānta são mais parecidas com nossos sentidos (a visão, por exemplo) do que com as frases de um livro. São upajīvya-pramāṇa, um meio de conhecimento primário (ou independente) como a visão, pois o conhecimento gerado por ele não está sujeito a verificação ou refutação por outro pramāṇa. Por isso as Upaniṣads são chamadas śāstra-cakṣuḥ, as escrituras que são como um olho, isto é, que são como o órgão da visão. Com esse olho, eu posso ver a mim mesmo como sou verdadeiramente. Posso ver a mim mesmo como ilimitado. Quando leio as frases de Vedānta, se tenho a atitude adequada, é como se eu estivesse a me debruçar sobre um espelho, não sobre um livro. A pergunta “qual é a prova de que o que Vedānta diz sobre mim está correto?” deixa de fazer sentido. Pois um pramāṇa primário contém em si mesmo a sua própria validade, ele mesmo é a prova. Você precisa apenas colocá-lo em uso, e ele funciona.
O processo de pôr esse śabda-pramāṇa em uso é o que chamamos de śravaṇam (escutar), definido como o estudo sistemático e consistente dos Vedāntas (Upaniṣads e textos auxiliares) sob orientação de um guru qualificado, por um certo tempo. Para que esse estudo dê o seu fruto na forma do conhecimento direto e livre de obstáculos, é necessário prāmaṇya-buddhi, a atitude de ver as palavras de Vedānta e do professor como um pramāṇa independente. Essa atitude é conhecida também pelo termo śraddhā, que às vezes traduzimos por “confiança” ou “fé”, por falta de uma palavra melhor.
A atitude de śraddhā nasce de uma vida de karmayoga, que purifica a mente, mas também do correto entendimento sobre o fato de Vedānta ser um śabda-pramāṇa, um meio de conhecimento independente na forma de palavras.
Conclusão
Sem esse entendimento e a sua consequente atitude, estuda-se Vedānta como uma teoria ou escola filosófica, e permanece-se para sempre na busca de uma experiência mística do Ilimitado falado nos textos – busca essa que nega o próprio ensinamento de Vedānta, pois o ensinamento é de que o buscador é agora e sempre aquilo mesmo que está buscando.
ओं तत् सत्
oṁ tat sat
[1] वेदान्तो नामोपनिषत्प्रमाणं तदुपकारीणि शारीरकसूत्रादीनि च॥
vedānto nāmopaniṣat-pramāṇaṁ tad-upakārīṇi śārīraka-sūtrādīni ca ||
[2] vedānām antāḥ vedāntāḥ.
[3] vedāntavijñānasuniścitārthāḥ, “vedāntajanitavijñānam vedāntavijñānam...”
[4] Bhagavad-gītā 15.15 “vedānta-kṛt”.
[5] pratyakṣa, anumāna, upamāna, arthāpatti, anupalabdhi, śabda.
[6] Os Ṛṣis são definidos tradicionalmente como mantradraṣṭāraḥ, não mantrakartāraḥ.
[7] Vicārasāgara (Āvarta 30) e Pancadaśī (capítulo 7).
[8] “...tat tvam asi śvetaketo...” Chāndogya Upaniṣad.
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A ideia, segundo a qual, os Vedas não foram escritos por homens, parece muito similar a ideia de que a Bíblia também não foi escrita por homens. Nesse caso, os Vedas, assim como a Bíblia, é aceito como a verdade absoluta, não questionável e não mutável. Porém, as formas e a mente são mutáveis e estão sujeitas à mudanças. Essa é a realidade em que vivemos. Os Vedas, e consequentemente, vedanta, assim como a Bíblia, referem-se não somente a uma outra realidade, mas sobretudo, afirmam que a outra realidade é a única verdade.
Muito bom poder participar sempre do conhecimento oferecido pelo professor Henrique.
Gratidão eterna!
Namastê!